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O PÂNICO DE 2008 - UMA CRISE EVITÁVEL

12.09.2011

A frase bem conhecida e muito citada de Tale of Two Cities, de Charles Dickens, resume perfeitamente o Pânico de 2008 deflagrado pelos EUA e por determinados países europeus.

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da insensatez.

O Pânico de 2008 foi uma crise no financiamento imobiliário que levou à falência quase 400 bancos americanos e envolveu enormes investimentos em ações baratas feitos pelo governo federal para reforçar a solvência dos bancos que tinham capital inadequado, a garantia da Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC) sobre depósitos à vista e dívidas de instituições financeiras para aumentar a liquidez institucional e exigiu a enormes compras de títulos do Tesouro e de agências habitacionais pelo Federal Reserve (Fed, banco central americano) para irrigar o mercado e baixar as taxas de juros. A catástrofe financeira também causou perda de riqueza, emprego, renda e da posse de casas de milhões de americanos.

A crise era evitável e os custos para os EUA e o mundo poderiam ter sido sensivelmente menores do que os que impactaram o governo federal, bancos e indivíduos.

Como ocorreu a crise americana e quais foram os sinais de alerta que sugeriam que uma bolha estava se formando são discussões importantes para o Brasil tendo em vista a recente alta dos preços dos imóveis na mais importante economia latino-americana. Poderiam os preços das casas no Brasil cair com intensidade suficiente para precipitar um caos econômico comparável ao dos Estados Unidos?

Os preços de casas devem refletir a oferta e a demanda. Problemas ocorrem quando se assumem riscos excessivos.

Os preços de casas, como os de qualquer classe de ativos, devem refletir a oferta e a demanda subjacentes. Problemas ocorrem quando construtores ou mutuários assumem riscos excessivos para construir imóveis ou comprar imóveis. A análise a seguir resume a pesquisa econômica de preços das casas nos EUA nos últimos 25 anos. [Home Price Trends from a Financial Perspective, Tendências dos preço de imóveis de uma perspectiva financeira, William C. Handorf (Real Estate Review), no prelo].

As tendências dos preços das casas americanas são derivadas do índice Case Shiller Composite para 10 cidades publicado pela Standard & Poor s. Em média, os preços das casas valorizaram-se 4,2% ao ano entre 1988 e 2011. Os preços das casas saltaram quase 19% em 2004 e, em seguida, mergulharam quase 20% vários anos depois. Um dado importante: os preços das casas caíram em dez dos 24 anos pesquisados.

Os preços das casas sobem e descem de acordo com a oferta, a demanda, o acesso a crédito e as projeções de preços futuros.

Os compradores de casas americanos recorrem a financiamento hipotecário para facilitar o grande investimento em imóveis. Normalmente, 70% a 95% do preço de compra de uma casa é, inicialmente, tomado de empréstimo. Se proprietários de casas em potencial têm acesso a crédito a preços favoráveis, a demanda por casas aumenta, produzindo uma pressão ascendente sobre os preços. A correlação entre os preços dos imóveis e o crescimento da dívida hipotecária é muito alta e positiva. O crédito representa um importante fator relacionado ao mercado imobiliário. Menos casas são compradas quando o crédito não é abundante. Menor demanda resulta em menor pressão sobre os preços dos imóveis.

O encarecimento das moradias é coerente no Brasil. Mas as inovações financeiras devem preocupar.

Historicamente, as corretoras e bancos provedores de financiamento habitacional nos EUA avaliavam o crédito de acordo com os três C do crédito: caráter, capital e capacidade. Qual é o histórico de crédito do devedor? Quanto capital o mutuário investirá na propriedade? Terá o mutuário capacidade de pagar juros e reembolsar o capital ao longo de toda a vida do empréstimo? Muitos desses princípios históricos de crédito foram ignorados ou relaxados entre 2002 e 2007, quando a bolha foi criada.

Primeiro, os bancos originaram os empréstimos alternative-A, segundo os quais os históricos de crédito ou a capacidade de honrar os empréstimos ao longo de sua vida não eram documentados e ou avaliados. Em segundo lugar, os bancos originaram empréstimos subprime (de segunda linha) a mutuários com histórico de crédito insatisfatório. Em terceiro lugar, os bancos originaram empréstimos com prazos de 40 anos, empréstimos a juros variáveis e empréstimos demandando apenas pagamento de juros. Aspirantes à compra de casas tinham de acessar esses empréstimos de alto risco porque os preços das casas estavam, à época, subindo mais rapidamente do que a renda e as novas estruturas de financiamento minimizavam as obrigações de pagamento inicial. Outros bancos ofereciam empréstimos a reboque ou segundas hipotecas com saldos de financiamento combinados de até, ou mesmo superiores a, 100% do valor da casa comprada, porque os compradores em potencial não conseguiam dar os costumeiros 10% a 20% habituais de entrada.

Finalmente, os bancos originaram empréstimos repassados a investidores e especuladores e refinanciaram empréstimos em curso com base na valorização do imóvel. Cada um desses empréstimos de alto risco impunham taxas de juros contratuais mais elevadas do que os tradicionais financiamentos habitacionais a juros fixos amortizado em 30 anos por mutuários confiáveis.

Wall Street exigiu os financiamentos a juros altos para criar títulos lastreados em hipotecas e obrigações de dívida colateralizadas (CDO, na sigla em inglês), cujo valor posteriormente implodiu, à medida que o número de execuções hipotecárias aumentou e dispararam os prejuízos decorrentes da inadimplência e da retomada de imóveis.

O acesso a financiamento habitacional de alto custo e alto risco permitiu que mais indivíduos, investidores e famílias comprassem casas; o crescimento da demanda fomentou o encarecimento das casas preços e de estruturas cada vez mais tolerantes que exigiam entradas e prestações iniciais ainda menores. A correlação entre preços de casas e crédito de alto risco é alta e positiva. Regras mais exigentes impostas pelo Congresso e agências regulamentadoras do setor bancário instituídas após o estouro da bolha no financiamento habitacional reduziram o número de mutuários qualificados a receber financiamento e a demanda por propriedades residenciais.

As agências regulamentadoras bancárias mantêm um acompanhamento constante do andamento da quitação das prestações dos financiamentos assumidos. Quando os mutuários não conseguem gerar o fluxo de caixa necessário para honrar o principal e o banco precisa acionar um fiador, caso exista, para ser reembolsado, os inspetores da agência fiscalizadora avaliam a gravidade do problema e classificam o empréstimo como potencialmente problemático, problemático ou perdido. Os bancos precisam assegurar que dispõem de provisões para créditos de liquidação duvidosa suficientes para absorver os prejuízos esperados envolvendo empréstimos durante o ano seguinte e os empréstimos classificados durante sua vida remanescente.

Mais prejuízos com créditos concedidos e empréstimos classificados exigem mais provisões. Os bancos criam, em seus balanços, uma margem de segurança maior contra perdas decorrentes de empréstimos não honrados, assumindo uma maior provisão contra tais prejuízos em sua demonstração de resultados. Acima de determinado limiar, o banco registrará prejuízos operacionais que dissipam capital e aumentam a probabilidade de a instituição ser colocada sob intervenção.

Se os bancos precisam retomar um imóvel, seu patrimônio imobiliário amplia a oferta de casas de financiamento problemático no mercado, o que baixa ainda mais os preços. Quando os bancos têm mais empréstimos problemáticos, seus gestores precisam alocar mais pessoal para encontrar soluções para os empréstimos em andamento ou para retomar imóveis que tiverem grandes atrasos na quitação de seus financiamentos, em vez de originar novos empréstimos. A correlação entre os preços das casas e ativos bancários problemáticos é alta e negativa. Os problemas, para os bancos, invariavelmente crescem durante e depois de uma recessão.

A soma da produção de bens e serviços em um país é conhecido como Produto Interno Bruto (PIB). Em uma economia expansionista, aumenta a demanda por casas, dada a expectativa dos indivíduos de serem capazes de arcar com os pagamentos de empréstimos contratuais para financiar uma casa. Quando a economia está crescendo mais rapidamente, empregos são criados, a renda pessoal disponível aumenta e a confiança dos consumidores cresce. A correlação entre crescimento do PIB e os preços das casas é alta e positiva. Dada a medida abrangente do crescimento mensurado pelo PIB, não é de surpreender que fatores inter-relacionados, como a renda pessoal disponível ou variações do patrimônio líquido do agregado familiar, exibam relações comparáveis.

Quando o valor dos bens cresce mais do que os passivos, as famílias sentem-se mais ricas e mais propensas a assumir obrigações financeiras adicionais. Aumenta, assim, a probabilidade de os banqueiros concederem crédito a pessoas físicas que possuam ativos adicionais de maior valor. Durante o período de 25 anos analisado, o patrimônio líquido pessoal nos EUA cresceu à taxa média de 5,4% ao ano. O patrimônio líquido declinou em quatro anos durante o quarto de século avaliado, findo em 2008, quando o patrimônio líquido mergulhou quase 20%, à medida que os preços, tanto dos imóveis como das ações, despencaram durante a forte recessão, na esteira do estouro da bolha habitacional. Tanto a renda como a riqueza pessoais são correlacionadas com a propensão a constituir novas famílias, o que também gera um incremento na demanda por bens imobiliários.

À medida que as pessoas saem da casa dos pais após concluírem os estudos, casam-se ou se divorciam, ou mudam-se para imóveis onde viverão sua aposentadoria, a demanda por bens duráveis e imóveis cresce. O crescimento do número de famílias aumenta a demanda por imóveis. O crescimento da renda pessoal disponível e o aumento da riqueza líquida pessoal convertem a demanda por casas em demanda efetiva, assumindo que os bancos estejam dispostos a - e tenham condições de - oferecer crédito a preços acessíveis. A correlação entre os preços das casas e a formação de agregados familiares é alta e positiva.

À medida que as construtoras de casas preveem o aumento da demanda por propriedades, os incorporadores adquirem mais terrenos ou destroem propriedades em áreas existentes subutilizadas e criam novas propriedades em condições edificáveis. As construtoras muitas vezes projetam a demanda futura extrapolando as vendas e os preços baseados em experiências recentes e constroem casas em número superior ou inferior à demanda, pois o crescimento do número de famílias e as condições da demanda efetiva mudam rapidamente. As construtoras colocam novas propriedades no mercado quando as projeções dos gestores sinalizam que a demanda continuará suficiente para que as propriedades sejam vendidas rapidamente com lucro.

Famílias e investidores procuram comprar propriedades rapidamente quando os preços estão em alta e as projeções indicam que subirão ainda mais. Seria de prever que a oferta adicional criada pelas construtoras resultasse no barateamento dos imóveis. No entanto, as iniciativas das construtoras exacerbam as tendências dos preços das casas, que depois caem, porque um número excessivo de novas casas está à venda. A correlação entre os preços das casas e o início de construção de novas residências é muito alta e positiva.

Depois que os preços das casas nos EUA começaram a despencar, em 2007, ocorreu o estouro da bolha habitacional. Os preços caíram cerca de 35% do pico ao vale; algumas regiões registraram quedas superiores a 50% nos preços.

Alguns bancos faliram porque concederam empréstimos de alto risco a mutuários e a especuladores, ao passo que outros faliram porque originavam empréstimos de alto risco. Um punhado de instituições incorreu em grandes prejuízos por emitir swaps de risco de crédito (CDS, em inglês) vinculados a títulos lastreados em hipotecas. Muitos investidores domésticos e internacionais sofreram graves prejuízos com títulos com classificação de crédito AAA, quando mutuários que assumiram os financiamentos subjacentes aos títulos não conseguiram ou não quiseram honrar o pagamento de seus empréstimos contratuais e as quedas dos preços das casa precipitaram prejuízos ainda maiores devido à inadimplência.

Centenas de bancos locais faliram quando empréstimos para aquisição, desenvolvimento e construção deixaram de ser honrados, e imóveis retomados por falta de pagamento passaram a ser vendidos por uma pequena fração do valor financiado.

A debacle poderia ter sido contida se tanto as agências regulamentadoras para o setor bancário como os banqueiros dessem mais atenção ao simplista, mas tradicional critério dos três C do crédito e verificassem se todos os mutuários em potencial tinham condições de honrar os pagamentos do empréstimo original e os refinanciamentos subsequentes, e investissem pelo menos entre 5% e 20% de seus próprios recursos na aquisição dos imóveis. Como resultado do cumprimento de regras prudenciais, a economia americana, os preços das casas, a riqueza pessoal e o emprego não teriam crescido tão rapidamente entre 2003 e 2006, mas teria sido drasticamente menor o gasto do governo de quase US$ 3 trilhões para minimizar a crise.

Não teria sido possível a Wall Street e às agências de classificação de crédito emitirem tal volume de títulos com atribuição de confiabilidade superior à real. A política pública focada em permitir que 70% dos americanos possuíssem sua própria casa não teria sido concretizada.

São os cidadãos brasileiros, e não os americanos, quem devem decidir se os preços dos imóveis em rápida elevação em São Paulo, Brasília ou no Rio de Janeiro significam uma bolha que estourará. Os preços das casas aumentam quando a demanda por propriedades pode ser honrada com dinheiro proveniente de uma renda permanente que está crescendo e da classe média, que está aumentando. A economia e a classe média brasileira continuarão em expansão à medida que empregos serão criados devido aos investimentos em petróleo, manufatura, Copa do Mundo e Olimpíada.

O crescimento econômico é coerente com o encarecimento das moradias. O Brasil tem incentivado a compra de casas próprias pela população de baixa renda com o programa Minha Casa Minha Vida. A política pública brasileira é compatível com o encarecimento das casas.

Embora o volume de financiamentos para aquisição de casas próprias no Brasil ainda seja muito baixo em relação ao PIB, o ritmo desses empréstimos cresceu de forma rápida e coerente. Tendo em vista que mais pessoas passam a ter casas próprias devido ao acesso ao crédito, ao crescimento econômico e a políticas públicas favoráveis, a demanda por madeira, concreto, cobre e outros materiais de construção aumenta e os preços sobem, o que provoca o encarecimento das casas.

Há muitas semelhanças entre a bolha no mercado habitacional americano e o brasileiro, exceto por uma diferença muito importante. Financiamentos de casas são concedidos cautelosamente pelos bancos, no Brasil, e em grande parte permanecem nas carteiras dos próprios bancos, em vez de serem vendido e reempacotados na forma de títulos lastreados em hipotecas.

Os brasileiros deveriam preocupar-se com uma possível bolha se os bancos começarem a comercializar novas estruturas financeiras de alto risco que minimizem as prestações iniciais dos financiamentos, reduzam o valor da entrada (inicial, não financiável), não exijam comprovação de renda ou de propriedades e se os empréstimos originados sejam vendidos no mercado secundário. Os custos públicos e privados decorrentes de ignorar tais sinais podem ser enormes. (Tradução Sérgio Blum)

William Handorf é professor de finanças na Faculdade de Administração da Washington University e diretor do Federal Home Loan Bank of Atlanta. Foi diretor do Federal Reserve de Richmond.

Este é o primeiro de uma série de artigos feitos por renomados economistas brasileiros e estrangeiros convidados pelo Valor para discutir a crise financeira internacional e avaliar seus possíveis desdobramentos.

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